30 de jun. de 2010


“Bloco de Notas”

O Cinema Noir…

Ou

o Drama da Redenção

Parte I

"O Expressionismo Alemão"


Foi com especial atenção e deleite que li a carta que me fez chegar por estes dias, a

dar nota das suas impressões após o visionamento de 2 filmes expressionistas

produzidos em Hollywood, que alguns críticos franceses eufemísticamente

designaram por “Noir”.


Para corresponder ao assunto da sua carta não tenho outro cavalo que me transporte

senão o que se alimenta dum paralelismo que vislumbro entre o drama vivido pelo

protagonista do filme “Noir” e o do “condenado” que segue um caminho penoso que

o conduz à redenção, no âmbito do drama de cariz teológico.


Desde já falo-lhe da génese da angústia que a corrente estética “Expressionismo”

assumiu como estandarte em finais da década de 10 do século passado. Angústia essa

gerada pelo trauma da vivência no mais terrível e devastador período da história

humana (1914-1945). Até ao século XX, nunca o indivíduo se sentira de tal forma

assaltado pelos seus próprios fantasmas, pela pulsão da morte, tão estranho perante

si próprio e, sobretudo, para com o “Outro”.


A Alemanha, a nação mais castigada e humilhada no seu orgulho, no desfecho da 1ª

Guerra Mundial, torna-se terreno fértil para o desenvolvimento, no campo da arte, de

um discurso pessimista, assombrado, consequência da humilhação do espírito épico

e patriótico do povo alemão, de que as óperas de Wagner e a filosofia de Nietzsche,

são quiçá, a expressão cultural mais retumbante.


É no seio desse povo de alma destroçada, que germina então um estilo de cinema

feito de sombras, de monstros humanos, de contrastes vincados (a duplicidade que

faz nascer, por exemplo, a figura da mulher fatal).

22 de jun. de 2010


Ai de nós, não passamos de uma nuance.

- F. Nietzsche


Sim, não era eu e a minha vontade quem esperou por Ela naquela manhã de

nevoeiro. Não era senão eu de braço dado com a minha consciência, e Ela sabia-o.

No fundo nenhum de nós desejava estar em presença do outro, apreciávamos, isso

sim, a nossa representação através da voz, via telefone, ou através das mensagens

trocadas na net.


Amamos a representação que a nossa intuição, alimentada pela imaginação, faz do

outro, a partir dos escassos elementos comunicantes que percepcionamos. Esse

“pouco” confortava-nos, não desejávamos ter o “eu” presencial do outro.


Abri a lista de mail´s para ler a mensagem que lhe havia enviado com a intenção de

espicaçar a sua curiosidade pelo filme “Crash” de David Cronenberg.


“Os Meus Filmes do Blog”

“Crash” – David Cronenberg, 1996

Parte III

Fucking Days, Fucking Dogs

Ou

As novas plataformas do “Eu” e do “Outro”


As cenas de “Crash” desenvolvem-se em torno de termos recorrentes: sexo, perigo,

excitação e morte. Ao longo das auto-estradas e dentro dos carros os personagens

são envolvidos numa espécie de sub-cultura onde se descobrem novas formas de

sexualidade, no confronto com o desejo para a morte, no seu desafio e na consciência

que um dia a morte vencerá.”


Ela sabia que esperei naquela manhã obedecendo aos ditames da minha consciência

que me ordenou me prestasse a conhecê-la pessoalmente, para não me negar à vida,

não me refugiar no quarto, não me abraçar ao medo, escondido atrás dum écrãn ou

do outro lado do auscultador.


E foi durante o mergulho que dei nestes pensamentos, que ela me ligou para concluir

as suas impressões sobre “Crash”, o filme que vira na outra noite.

Esta é uma era da produção do “outro”, onde a pior alienação é estar despojado do

“outro”, ter de o produzir na sua ausência. Esta ausência preenche-se com as

invenções técnicas que amputam ou acrescentam, modelando o corpo em função de

um modelo ideal.


Fiquei prostrado no sofá, filtrando as palavras que a minha vizinha deixara no meu

ouvido, assumindo uma outra identidade com a voz, apenas a voz, uma faceta, uma

nuance, e não um todo.


“…esse modelo ideal é feito de marcas impressas nas cicatrizes do corpo, como um

catálogo de ferimentos, cheios de amputações e implantes, num esquema em que os

dispositivos da técnica permitem re-alcançar a integridade do corpo, ainda que se

mantenham os vestígios do que parecem ser cicatrizes ou se utilizem próteses…pró…

pró…pró…pró…pró…pró…pró…pró…pró…pró…pró

E foi então que se instalou uma súbita anomalia do outro lado; a voz da minha

vizinha começou a repetir indefinidamente a primeira sílaba da última palavra. Sem

precisar de ouvir mais, ajustei os atacadores dos sapatos, deixei a queimar no cinzeiro

o cigarro (que não fumo) e saí para a rua.


The End


Bibliografia:

Todas as citações empregues nas três partes de que se compõe este “texto” foram retiradas do ensaio “Uma Metáfora Chamada “Crash” – A inquietação do corpo”, da autoria de Paula Cordeiro.

10 de jun. de 2010



Contam as lendas que habitam a mitologia das gentes do Nordeste

húmido e fértil da India, que certa hora, sepultados em remansoso

repouso, se gerou certo rebuliço por entre um grupo de leões brancos

porque avistaram um grupo de saltimbancos e sua caravana que seguiam

floresta fora disfarçados de leões, momos eles, de “casaco” idêntico, um

focinho parecido, bigodes de igual modo semelhantes, trejeitos a condizer

e uma cauda a compor o simulacro. Um deles, o que fazia a figura de

tratador, sustentava nas mãos um velho gramofone que emitia um rugido

mais imenso que o dos verdadeiros leões. Perante tão magnificente

espectáculo, os leões brancos, no papel de espectadores só tiveram uma

coisa a dizer: passaram a língua pelos bigodes, em sinal de satisfação,

rendidos ao aparato.




Lambi os olhos dela com carinho desmedido, confesso, ao vê-la sujeita ao

sofrimento que, no fundo, impôs a si própria. O travo adocicado da saliva

logo se deixou vencer pelo acre e lânguido odor da suas lágrimas.


Fôra atropelada por um automóvel, por desvelo seu, quando se expôs à

sorte, ao desafio, passeando-se estrada fora, mesmo pelo centro da via.

Foi projectada contra um muro e logo as feridas se abriram por todo o

corpo. De imediato um grupo de cachorros correu em direcção a ela.

Apreciaram a sua coragem e foram socorrê-la? Não, todos, excitados

pela vertigem do desafio que ela se dispôs a fazer à morte, correram para

com ela viverem esse momento orgástico, descarregando no ventre dela a

sua energia sexual.


Tomados pela inveja, correram para a possuírem, conseguindo por essa

via ultrapassar esse sentimento que os amesquinhava.

As fotos que lhe tiraram no momento do acidente estão afixadas pelas

paredes do bairro. Uau!! Suspiraram os transeuntes perante a visão de

tão espectacular acidente. Quem é ela? Queremos conhecê-la! Era o que

mais se ouvia pelas ruas.


A heroicidade e o corpo mutilado da cachorrinha fizeram-na atingir um

ideal como corpo-modelo.


“Em “Crash” Cronenberg deixa o corpo assumir a sua autonomia

encarando as suas próprias modificações no quadro das consequências

que acarretam para a sociedade moderna.” Aínda me ressoavam nos

ouvidos estas palavras com que a minha vizinha, dona da cadelinha, me

transmitira as suas impressões sobre o filme que vira no dia anterior.

Não imaginava ela o que se iria passar com a sua cadelinha; de súbito se

tornou uma “star”, à custa das próteses que o seu corpo agora ostenta, à

custa de ser “outra”.

4 de jun. de 2010

Os Gritos de Hitchcock


O curioso sobre a história das artes, é que podemos dizer que determinadas formas de fazê-la em tudo que esta palavra abrange foi desenvolvida por pessoas de especial talento. Assim, é possível afirmar que o cinema feito por suspense não seria o mesmo sem o Mestre do género, isso é bem óbvio.

Entre os apaixonados por cinema, podemos notar que dentre toda a filmografia de Sir Alfred há sempre um filme capaz de agradar, ou seja, alguns não adoram
“Vertigo”, mas idolatram “Suspicion”, parece que sua carreira foi construída com base nessa mentalidade. E não é difícil de entender por que este nome é tão forte, sua preocupação com elementos simbólicos e de interpretação pessoal, não é igualável a Kubrick, mas foi importante para toda a safra colhida nas décadas seguintes ao seu surgimento, porem o que talvez mais chame a atenção em sua técnica é o uso da câmera, mas não é sobre isso que trata este texto.

Ao assistir um filme há sempre uma “Silaba Tónica” que soa mais forte, e que ao passar do tempo te faz lembrar a fita. No conjunto da obra do Mestre do suspense é possível elencar os gritos infernais de seus personagens, que nos proporcionam momentos de adrenalina maior do que muito filme dito pesado.

Na primeira cena de Vertigo acompanhamos a perseguição de
James Stewart e seu amigo a um suspeito sobre os telhados de São Francisco, Stewart salta, escorrega e faz espatifar um pedaço de telha. Seu amigo tenta ajudar e o som é agudo, forte, como se estivesse caindo em um abismo em direção ao inferno. Em seus minutos iniciais, “Vertigo” já disse tudo com apenas um som, “O som perfeito”. O jogo de câmera e montagem empreendido por Hitchcock chama a atenção, mas, o que também impressiona, dentro do cinema, é a utilização do som, o tão chocante grito que expressa “acho que esse é o fim da linha”, é algo que causa mais terror do que qualquer cena de “jogos mortais”.

“O Homem que sabia demais” com todo aquele humor inteligente que não prejudica em nada a tensão forte que causa a cada instante, é um filme que carrega certo ar de sátira, não sei se o mestre quis brincar em sua refilmagem, pois ainda não vi a primeira versão. Doris Day a Renee Zellweger do seu tempo, põe a cereja no topo de uma das cenas de maior nervosismo e apreensão do cinema, com o seu grito alarmante no espetáculo do grande Bernard Herrmann. Outra questão neste filme é a brincadeira de misturar ficção e realidade já que quem assina a trilha é como de costume o Bernard Herrmann.

Provavelmente a cena do chuveiro de
"Psicose" é a mais famosa do mundo e foi preciso apenas uma vitima feminina, um ambiente claustrofóbico onde ocorre o maior numero de acidentes em uma casa, uma faca, uma música e um grito, ou melhor, o grito, que alem de muita crueldade carrega muita sensualidade..

Outro filme que merece ser citado é "Interlúdio”, embora seja um filme de sussurros (espionagem) exprimi o sentimento de desespero que o grito demonstra, em cenas como aquela em que
Ingrid Bergman sendo levada ao quarto tendo a consciência de que esta sendo envenenada, e a de Claude Rains voltando para casa de cabeça baixa sabendo de sua morte certa pelas mãos de seus amigos.

A noção que Hitchcock tinha do mundo físico e do inconsciente humano era literalmente e figurativamente assustadora transformava os acontecimentos banais de seus filmes no mais terrível pesadelo, como o idealismo nazista, egoísta, esnobe e doentio que é o tema central de
"Rope 1948" (meu preferido do mestre), que tem seu inicio com um grito daqueles que temos pedindo por ajuda quando acordamos de um pesadelo, e nesse caso o pesadelo esta só começando, pois o absurdo habita na mente das pessoas. Hitchcock foi um dos grandes mestres das artes, e só não é aplaudido por aqueles que ainda não lhe deram oportunidade.