22 de jun. de 2010


Ai de nós, não passamos de uma nuance.

- F. Nietzsche


Sim, não era eu e a minha vontade quem esperou por Ela naquela manhã de

nevoeiro. Não era senão eu de braço dado com a minha consciência, e Ela sabia-o.

No fundo nenhum de nós desejava estar em presença do outro, apreciávamos, isso

sim, a nossa representação através da voz, via telefone, ou através das mensagens

trocadas na net.


Amamos a representação que a nossa intuição, alimentada pela imaginação, faz do

outro, a partir dos escassos elementos comunicantes que percepcionamos. Esse

“pouco” confortava-nos, não desejávamos ter o “eu” presencial do outro.


Abri a lista de mail´s para ler a mensagem que lhe havia enviado com a intenção de

espicaçar a sua curiosidade pelo filme “Crash” de David Cronenberg.


“Os Meus Filmes do Blog”

“Crash” – David Cronenberg, 1996

Parte III

Fucking Days, Fucking Dogs

Ou

As novas plataformas do “Eu” e do “Outro”


As cenas de “Crash” desenvolvem-se em torno de termos recorrentes: sexo, perigo,

excitação e morte. Ao longo das auto-estradas e dentro dos carros os personagens

são envolvidos numa espécie de sub-cultura onde se descobrem novas formas de

sexualidade, no confronto com o desejo para a morte, no seu desafio e na consciência

que um dia a morte vencerá.”


Ela sabia que esperei naquela manhã obedecendo aos ditames da minha consciência

que me ordenou me prestasse a conhecê-la pessoalmente, para não me negar à vida,

não me refugiar no quarto, não me abraçar ao medo, escondido atrás dum écrãn ou

do outro lado do auscultador.


E foi durante o mergulho que dei nestes pensamentos, que ela me ligou para concluir

as suas impressões sobre “Crash”, o filme que vira na outra noite.

Esta é uma era da produção do “outro”, onde a pior alienação é estar despojado do

“outro”, ter de o produzir na sua ausência. Esta ausência preenche-se com as

invenções técnicas que amputam ou acrescentam, modelando o corpo em função de

um modelo ideal.


Fiquei prostrado no sofá, filtrando as palavras que a minha vizinha deixara no meu

ouvido, assumindo uma outra identidade com a voz, apenas a voz, uma faceta, uma

nuance, e não um todo.


“…esse modelo ideal é feito de marcas impressas nas cicatrizes do corpo, como um

catálogo de ferimentos, cheios de amputações e implantes, num esquema em que os

dispositivos da técnica permitem re-alcançar a integridade do corpo, ainda que se

mantenham os vestígios do que parecem ser cicatrizes ou se utilizem próteses…pró…

pró…pró…pró…pró…pró…pró…pró…pró…pró…pró

E foi então que se instalou uma súbita anomalia do outro lado; a voz da minha

vizinha começou a repetir indefinidamente a primeira sílaba da última palavra. Sem

precisar de ouvir mais, ajustei os atacadores dos sapatos, deixei a queimar no cinzeiro

o cigarro (que não fumo) e saí para a rua.


The End


Bibliografia:

Todas as citações empregues nas três partes de que se compõe este “texto” foram retiradas do ensaio “Uma Metáfora Chamada “Crash” – A inquietação do corpo”, da autoria de Paula Cordeiro.

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