
“Ai de nós, não passamos de uma nuance.”
- F. Nietzsche –
Sim, não era eu e a minha vontade quem esperou por Ela naquela manhã de
nevoeiro. Não era senão eu de braço dado com a minha consciência, e Ela sabia-o.
No fundo nenhum de nós desejava estar em presença do outro, apreciávamos, isso
sim, a nossa representação através da voz, via telefone, ou através das mensagens
trocadas na net.
Amamos a representação que a nossa intuição, alimentada pela imaginação, faz do
outro, a partir dos escassos elementos comunicantes que percepcionamos. Esse
“pouco” confortava-nos, não desejávamos ter o “eu” presencial do outro.
Abri a lista de mail´s para ler a mensagem que lhe havia enviado com a intenção de
espicaçar a sua curiosidade pelo filme “Crash” de David Cronenberg.
“Os Meus Filmes do Blog”
“Crash” – David Cronenberg, 1996
Parte III
Fucking Days, Fucking Dogs
Ou
As novas plataformas do “Eu” e do “Outro”
“ As cenas de “Crash” desenvolvem-se em torno de termos recorrentes: sexo, perigo,
excitação e morte. Ao longo das auto-estradas e dentro dos carros os personagens
são envolvidos numa espécie de sub-cultura onde se descobrem novas formas de
sexualidade, no confronto com o desejo para a morte, no seu desafio e na consciência
que um dia a morte vencerá.”
Ela sabia que esperei naquela manhã obedecendo aos ditames da minha consciência
que me ordenou me prestasse a conhecê-la pessoalmente, para não me negar à vida,
não me refugiar no quarto, não me abraçar ao medo, escondido atrás dum écrãn ou
do outro lado do auscultador.
E foi durante o mergulho que dei nestes pensamentos, que ela me ligou para concluir
as suas impressões sobre “Crash”, o filme que vira na outra noite.
“Esta é uma era da produção do “outro”, onde a pior alienação é estar despojado do
“outro”, ter de o produzir na sua ausência. Esta ausência preenche-se com as
invenções técnicas que amputam ou acrescentam, modelando o corpo em função de
um modelo ideal.”
Fiquei prostrado no sofá, filtrando as palavras que a minha vizinha deixara no meu
ouvido, assumindo uma outra identidade com a voz, apenas a voz, uma faceta, uma
nuance, e não um todo.
“…esse modelo ideal é feito de marcas impressas nas cicatrizes do corpo, como um
catálogo de ferimentos, cheios de amputações e implantes, num esquema em que os
dispositivos da técnica permitem re-alcançar a integridade do corpo, ainda que se
mantenham os vestígios do que parecem ser cicatrizes ou se utilizem próteses…pró…
pró…pró…pró…pró…pró…pró…pró…pró…pró…pró…
E foi então que se instalou uma súbita anomalia do outro lado; a voz da minha
vizinha começou a repetir indefinidamente a primeira sílaba da última palavra. Sem
precisar de ouvir mais, ajustei os atacadores dos sapatos, deixei a queimar no cinzeiro
o cigarro (que não fumo) e saí para a rua.
The End
Bibliografia:
Todas as citações empregues nas três partes de que se compõe este “texto” foram retiradas do ensaio “Uma Metáfora Chamada “Crash” – A inquietação do corpo”, da autoria de Paula Cordeiro.
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