10 de jun. de 2010



Contam as lendas que habitam a mitologia das gentes do Nordeste

húmido e fértil da India, que certa hora, sepultados em remansoso

repouso, se gerou certo rebuliço por entre um grupo de leões brancos

porque avistaram um grupo de saltimbancos e sua caravana que seguiam

floresta fora disfarçados de leões, momos eles, de “casaco” idêntico, um

focinho parecido, bigodes de igual modo semelhantes, trejeitos a condizer

e uma cauda a compor o simulacro. Um deles, o que fazia a figura de

tratador, sustentava nas mãos um velho gramofone que emitia um rugido

mais imenso que o dos verdadeiros leões. Perante tão magnificente

espectáculo, os leões brancos, no papel de espectadores só tiveram uma

coisa a dizer: passaram a língua pelos bigodes, em sinal de satisfação,

rendidos ao aparato.




Lambi os olhos dela com carinho desmedido, confesso, ao vê-la sujeita ao

sofrimento que, no fundo, impôs a si própria. O travo adocicado da saliva

logo se deixou vencer pelo acre e lânguido odor da suas lágrimas.


Fôra atropelada por um automóvel, por desvelo seu, quando se expôs à

sorte, ao desafio, passeando-se estrada fora, mesmo pelo centro da via.

Foi projectada contra um muro e logo as feridas se abriram por todo o

corpo. De imediato um grupo de cachorros correu em direcção a ela.

Apreciaram a sua coragem e foram socorrê-la? Não, todos, excitados

pela vertigem do desafio que ela se dispôs a fazer à morte, correram para

com ela viverem esse momento orgástico, descarregando no ventre dela a

sua energia sexual.


Tomados pela inveja, correram para a possuírem, conseguindo por essa

via ultrapassar esse sentimento que os amesquinhava.

As fotos que lhe tiraram no momento do acidente estão afixadas pelas

paredes do bairro. Uau!! Suspiraram os transeuntes perante a visão de

tão espectacular acidente. Quem é ela? Queremos conhecê-la! Era o que

mais se ouvia pelas ruas.


A heroicidade e o corpo mutilado da cachorrinha fizeram-na atingir um

ideal como corpo-modelo.


“Em “Crash” Cronenberg deixa o corpo assumir a sua autonomia

encarando as suas próprias modificações no quadro das consequências

que acarretam para a sociedade moderna.” Aínda me ressoavam nos

ouvidos estas palavras com que a minha vizinha, dona da cadelinha, me

transmitira as suas impressões sobre o filme que vira no dia anterior.

Não imaginava ela o que se iria passar com a sua cadelinha; de súbito se

tornou uma “star”, à custa das próteses que o seu corpo agora ostenta, à

custa de ser “outra”.

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