
Contam as lendas que habitam a mitologia das gentes do Nordeste
húmido e fértil da India, que certa hora, sepultados em remansoso
repouso, se gerou certo rebuliço por entre um grupo de leões brancos
porque avistaram um grupo de saltimbancos e sua caravana que seguiam
floresta fora disfarçados de leões, momos eles, de “casaco” idêntico, um
focinho parecido, bigodes de igual modo semelhantes, trejeitos a condizer
e uma cauda a compor o simulacro. Um deles, o que fazia a figura de
tratador, sustentava nas mãos um velho gramofone que emitia um rugido
mais imenso que o dos verdadeiros leões. Perante tão magnificente
espectáculo, os leões brancos, no papel de espectadores só tiveram uma
coisa a dizer: passaram a língua pelos bigodes, em sinal de satisfação,
rendidos ao aparato.
Lambi os olhos dela com carinho desmedido, confesso, ao vê-la sujeita ao
sofrimento que, no fundo, impôs a si própria. O travo adocicado da saliva
logo se deixou vencer pelo acre e lânguido odor da suas lágrimas.
Fôra atropelada por um automóvel, por desvelo seu, quando se expôs à
sorte, ao desafio, passeando-se estrada fora, mesmo pelo centro da via.
Foi projectada contra um muro e logo as feridas se abriram por todo o
corpo. De imediato um grupo de cachorros correu em direcção a ela.
Apreciaram a sua coragem e foram socorrê-la? Não, todos, excitados
pela vertigem do desafio que ela se dispôs a fazer à morte, correram para
com ela viverem esse momento orgástico, descarregando no ventre dela a
sua energia sexual.
Tomados pela inveja, correram para a possuírem, conseguindo por essa
via ultrapassar esse sentimento que os amesquinhava.
As fotos que lhe tiraram no momento do acidente estão afixadas pelas
paredes do bairro. Uau!! Suspiraram os transeuntes perante a visão de
tão espectacular acidente. Quem é ela? Queremos conhecê-la! Era o que
mais se ouvia pelas ruas.
A heroicidade e o corpo mutilado da cachorrinha fizeram-na atingir um
ideal como corpo-modelo.
“Em “Crash” Cronenberg deixa o corpo assumir a sua autonomia
encarando as suas próprias modificações no quadro das consequências
que acarretam para a sociedade moderna.” Aínda me ressoavam nos
ouvidos estas palavras com que a minha vizinha, dona da cadelinha, me
transmitira as suas impressões sobre o filme que vira no dia anterior.
Não imaginava ela o que se iria passar com a sua cadelinha; de súbito se
tornou uma “star”, à custa das próteses que o seu corpo agora ostenta, à
custa de ser “outra”.
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