23 de ago. de 2010

BARRY LYNDON….o anti-herói quixotesco

(Stanley Kubrick, 1975)

Os tempos de Rolando* passaram, os do Quixote não mudam. E porquê esta disparidade? Porque se atrofiam os heróis sublimes enquanto que os ponderados mestres do fracasso se mantêm de pé? …”

- Agustina Bessa-Luís-


O esplendor que abraça esta película é constatado, desde logo, pela sua plasticidade, pelo cuidado na composição das imagens. Neste campo, o filme aproxima-se, creio, do trabalho de alguns pintores ingleses, o barroco Gainsborough e os românticos Constable e Turner, pelas cores e os céus daquelas paisagens que ele filma como se quisesse fazer um breve intervalo na narrativa e deixar a “voz off” fazer a ligação para o que a seguir veremos, sobreposta a uma paisagem, por vezes tão arrebatadora imagem.

Este trabalho de Kubrick é igualmente objecto de devoção pela particularidade do uso exclusivo de luz natural, factor de veracidade que contrasta seriamente com a postura de algumas personagens na trama do filme, em particular a conduta do seu protagonista, como iremos verificar.

O enredo do filme é, no fundo, o desenrolar da saga (pouco venturosa) de um homem de origem humilde que ainda moço dá mostras de se encaminhar por uma conduta heróica e romântica, dissolvendo-se depois o seu carácter na imitação da perfídia das personagens por quem foi sendo iludido e enganado ao longo da primeira metade do filme (a prima, os ladrões na estrada, a prostituta com o menino, o capitão do exército prussiano).

Barry Lyndon é a saga duma personagem de perfil quixotesco, desde logo pelo seu carácter romântico, quando jovem, montado no seu cavalo, pouco preparado para as rasteiras que a vida lhe pregaria; ele segue montado no “cavalo da ilusão”, deslocado da realidade, pela vida fora.

Na segunda metade do filme vêmo-lo como um jogador, um trapaceiro, um peão ao serviço da mentira, a duplicidade, que o capitão do exército prussiano ajuda a refinar na sua mente.

Mais uma vez o vemos embarcar, em cima de um cavalo, numa ilusão que agora se molda pela conquista de fortuna e estatuto social que lhe permitirão uma vida tranquila e desregrada. Isso ele conseguiu, mas por via da fuga à realidade para a qual tendia a sua mente, mais uma vez o infortúnio lhe bate à porta, e termina derrotado num duelo, é-lhe amputada uma perna, e na ultima cena, o realizador poupa-o a uma ultima humilhação: ver-mo-lo cair abaixo da diligência.

Não criou raízes, nada construiu, viveu à custa de mentiras que prejudicaram os outros. Contudo, não consigo reprovar mais a sua postura do que a das personagens que foram traindo as suas ilusões.

Será apenas a um homem e à sua falta de princípios que Kubrick aponta o dedo nesta obra? Não me parece, antes sou levado a crer que este filme é, isso sim, um libelo acusatório a uma ideologia política (liberalismo) assim como a um sistema económico (capitalismo) que este autor quer desmascarar na personagem de Barry Lyndon, que cresce num meio que desponta e refina o mal e a perfídia no ser-humano.

Quando concluíu as filmagens desta obra de tom “amargurado”, Kubrick poderia ter dito algo semelhante ao que Raskolnikov, o assassino de “Crime e Castigo”, já vencido pela culpa e tomado pela lucidez, desabafou: “Não matei um ser humano, mas sim um principio”.


*Rolando: personagem da literatura medieval e renascentista europeia, inspirada num obscuro conde que viveu no sec. VIII. Foi sobrinho e paladino do imperador Carlos Magno e morreu heroicamente, lutando contra os Mouros na Peninsula Ibérica.

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