26 de ago. de 2010

A BELA IMPERTINENTE

(Jaques Rivette,1991)


A líbido como prisão e libertação

O predador e a presa,

Eis a velha proposição,

Que, passando os tempos se vão

E se mantém tão acesa.

Porém, uma questão se impõe com firmeza:

O predador… não poderá ser também a presa?!


Enquanto me dirigia para aqui, passei pela entrada de uma caverna, a caverna mítica; abreviei o passo e levei os meus olhos curiosos a espreitar lá para os seus interiores…e que viram os meus olhos surpreendidos? Um dragão refastelado nos seus Reais aposentos (a caverna que tinha gravadas nas paredes duas figuras femininas, uma delas de uma beleza notável, a outra nem por isso, figura desgastada pela corrupção do tempo, que o tempo se encarregou de disfarçar os traços, sem elegância nas formas, velha gravura dos tempos da face negra da lua).

Enquanto dormia, o dragão ia soltando algumas palavras. Pude perceber que, balbuciando os lábios, ia contando alguns episódios de uma história, remexendo as órbitas e a saliva escorrendo dos lábios agitados.

Dizia ele que um certo pintor, que vivia num castelo com a sua esposa, encarava as suas modelos como o caçador encara a presa que lhe escapa, e só tirava prazer do acto de as pintar enquanto a modelos lhe resistem, o seu corpo e sua vontade não se dispõem às poses com que ele as quer fixar na tela.

Certo dia aquela que veio a ser sua esposa fora também sua modelo para um quadro que para ele era então um desafio, mas de repente o pintor perdeu a motivação e deixou-o inacabado, muito incompleto. Ela deixara de lhe proporcionar uma “caçada” mesmo antes de ser fixada na tela, pois por ele se apaixonara.

Antes ele dizia-lhe: “Quero pintar-te porque te amo”, mas a partir do momento em que ela aceita fazer parte dele, do seu microcosmos, ele confessa-lhe: “Não te quero pintar porque te amo”, o amor falava por ele.

E foi nessa lógica montado que ele propôs a uma jovem que o visitara no seu castelo, acompanhada do marido, que dele se fizesse modelo. Ela tinha o nariz empinado, lá isso tinha, era muito senhora de si. Embora amasse o marido, pressentia já que um dia se zangariam a sério, era como se ela soubesse já que a relação deles não tinha futuro, como se andasse em busca de uma fuga, inquieta.

Ela aceitou, contrafeita, embora não suportasse os modos desagradáveis do pintor; e lá foi com ele para o ateliê.

Que nos intervalos das sessões no ateliê, a modelo procurava a esposa do pintor para que esta dele falasse para ela melhor conhecer a postura distante e “superior” do pintor para com ela; foi algo que também percebi que o Dragão sonolento deixou escapar por entre os lábios.

E o dragão foi contando que por esses dias naquele castelo onde tudo se passava, o silêncio reinava, as paredes de pedra tinham um semblante frio para que a palavra a tudo se sobrepusesse, para que ela revelasse que nada nem ninguém tivesse naquele castelo mais força que a palavras.

E o que é certo é que se ao princípio o pintor a tratou com rispidez, pegando-lhe, bruto, nos braços e ombros, forçando o seu corpo às poses que pretendia, como se duma luta se tratasse, ela, porém foi vencendo a sua rispidez, a sua “superioridade” de senhor daquele espaço e da presa encurralada.

Ela foi conversando com ele, conquistando a sua simpatia e a certa altura ELE ACEITAVA JÁ as suas poses naturais, nada lhe impondo, antes aproveitando para fixar as poses dela que achou mais interessantes nesse momento de comunhão de espíritos.

Mas depois desse MOMENTO ORGÁSTICO, ambos se fecharam novamente, foi como se depois de ambos se terem partilhado, ele se sentisse vencido, o predador sentia-se ferido no seu orgulho, e deixa de ter estímulo para pintar, sem saber lidar com a aproximação que entre os dois se gerara, sentia-se vencido por aquela que sempre vira como presa.

Deixou o quadro inacabado, escondeu-o num lugar inacessível para que ninguém sentisse que ele fora derrotado.

Então, ele pintou à pressa um corpo sem rosto, um corpo anónimo, e assim tanto ele como ela se conseguiram libertar, afinal, da tensão do “COMBATE” QUE ENTRE ELES SE INSTALOU desde o momento em que ela lhe invadiu o refúgio para perturbar a sua paz, como ele referiu no início do filme.

Nas sequências finais, vêmo-los já descomprometidos com as amarras, os medos que os prendiam.

E se eu caí abaixo da cama nesse momento da narração, foi apenas porque me vieram acordar - quando eu sonhava com a caverna do animal mítico - avisando-me de que o pequeno-almoço estava já na mesa.

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