
PICNIC AT HANGING ROCK – Peter Weir, 1975
(um discurso sobre a sexualidade)
Tendo aqui chegado, permitam-me então a amável providência e a gentil inspiração
que poise a cartola (que não uso), pendure a bengala (que aínda dispenso) e afague o
bigode (que não tenho), antes de começar a falar aqui, durante algumas linhas, sobre
este filme cuja acção se desenrola no ano de 1900, algures na Austrália, no dia de S.
Valentim.
Estava para aqui com os meus botões a matutar em que moldes é razoável conceber a
figuração da sexualidade senão de uma forma simbólica, como um sonho, em que
não exista linearidade na sequência das imagens, na sequência dos significantes;
onde se omite informação acerca das personagens e seu destino, num filme de
contornos imprecisos, como a névoa que cerca os rochedos de Hanging Rock no
genérico inicial ?!
Antes de chegar aqui e aventurar-me a compor estas linhas, vinha a dizer a mim
próprio que este não é um filme sobre o Além ou sobre o Aquém; este é um filme
sobre a “passagem”, como irei especificando.
Mrs. Appleyard, directora do colégio com o mesmo nome é uma figura austera, de
semblante pesado e descaída na idade, que impõe severa disciplina às alunas, a
disciplina que exige também para si própria, patente na rejeição da vida exterior, na
castração dos sentidos, no isolamento num espaço fechado. O fechamento de Mrs
Appleyard sobre si própria é também uma forma de fuga à tentação, fuga essa que ela
aconselha às alunas que vão participar no piquenique em Hanging Rock, prevenindo-
as para não se aproximarem dos rochedos, alegando que estes são habitat de
formigas venenosas e serpentes.
Como veremos mais tarde, nem as formigas são venenosas nem há rasto de serpente
alguma; o que chegamos a ver são apenas lagartos pré-históricos, tão perdidos no
tempo, tão presentes no desejo de o encontrar, tal como o desejo de assumir a
sexualidade em toda a sua expressão, demonstrada pelas 3 meninas e pela senhorita
Mccraw.
Falo do momento em que todas elas se sentiram irresistivelmente atraídas pelo
magnetismo dos rochedos com formas ponteagudas, (a simbolizarem o falo), para
se dirigirem para o seu interior através de fissuras, libertando-se antes de meias e
sapatos, expondo a pele, sinal de entrega, de obediência à pulsão sexual que as
“arrasta”, como fará mais tarde com o jovem que vem em sua busca.
Entram nas galerias, cujo recorte na rocha se assemelha à entrada do sexo da Mulher,
indo desaguar num espaço amplo, como se de um útero falássemos. Como um
templo que mitifica, consagra o ritual milenar do acto da fertilização. Como que um
templo de tribos de tempos primevos.
O casal de velhos que assentaram os seus corpos no bosque, como esfinges, perto dos
rochedos, são (e porque não?) duas flores que secaram ao sol, por oposição à
depressão que aflige, que estiola e encerra Mrs Aplleyard na obscuridade do seu
gabinete ou do seu quarto.
Vemos a directora, de perfil vitoriano, assim como as professoras do colégio, e Sara,
igualmente, a tomarem uma inclinação pelo desvio em termos de objecto sexual,
seguirem uma propensão para a homossexualidade, devido à ausência do objecto
sexual masculino. É um microcosmos feminino encerrado num espaço limitado,
interagindo e relacionando-se as mulheres entre si.
Sara é, ouso dizê-lo, vítima das abordagens das superioras, algo que não nos é
mostrado mas de que suspeitamos, até pelo castigo a que a directora a sujeita:
proíbida de ir ao piquenique para ficar junto de Mrs. Appleyard a recitar um poema
que esta lhe havia indicado para memorizar. Sara não é capaz, contrapõe sugerindo
recitar um poema de amor de sua autoria (sinal da resistência aos avanços da
directora), sugestão que Mrs. Appleyard, contrariada, logo rejeita, deixando Sara
prostrada, em lágrimas (a mutilação do desejo), chamando pelo irmão (figura
masculina e paternal que substitui o Pai, que Sara, órfã, não deve ter chegado a
conhecer) e por Miranda, figura maternal, a quem Sara dedica amor, expresso em
poemas.
Miranda, um anjo saído das telas de Boticcelli, no dizer da sua professora, inspira
amor, homens e mulheres seguem-na com o olhar. Ao desaparecer por entre os
rochedos, dominada pela pulsão sexual, torna-se um símbolo, símbolo de quê? Do
desejo humano de abraçar, de se entregar ao mundo, de cumprir o seu Ser na sua
totalidade: intelecto e sentidos.
O que é que Miranda deixa para trás? Um grupo de mulheres tomadas pela histeria,
enquanto sintoma patológico, provocado pela mutilação do desejo; histeria essa que
as faz sentir repulsa pela pulsão sexual (como manifestou a rapariga que ficou em
pânico ao sentir o magnetismo dos rochedos, e voltou aos gritos, em estado de
choque para o local do piquenique).
Sara representa as que ficam para trás, é a figuração do esvaziamento (a única forma
de erotismo que lhe estava reservada: o espíritual, é espezinhado pela directora), da
perda, da ausência de laços estreitos com o mundo que a rodeia, é o simbolo do
sofrimento humano, do Homem apenas consigo próprio, já sem reflexo nos outros,
que nos outros já não se encontra a si próprio.
Um filme tão intenso pelo que de belo transporta quer no seu jogo simbólico quer no
esplendor das suas imagens.
The End
2 comentários:
Não é por acaso que este filme é dos meus preferidos dos anos 70.
Já o vi duas ou três vezes.
Bom texto, Zé :)
Esta descrição está de tal forma bem conseguida, tanto na fórmula que descreve a narrativa, como na componente subjectiva do espectador que nem sinto necessidade de visionar o filme. Gostaria entretanto de partilhar uma perspectiva que me parece a propósito. Esta interacção das vontades individuais, aqui expressa observando a componente emotiva e sentimental potenciada através sexualidade, onde se observa a reacção à vontade de poder que emerge num determinado momento de um tempo e de um espaço, ou seja, onde se assiste à manifestação de forças reactivas que tentam evitar que aqueles que podem concretizem os propósitos que a sua vontade determina, parece ser um tema querido a este realizador uma vez que o repete em 89 no único filme que eu dele assisti, o " Dead Poets Society", onde ao longo de toda a narrativa está igualmente presente uma forte critica às forças da negação que tentam impedir a afirmação das vontades de poder, no sentido de impedir a concretização daquilo que naturalmente seria a expressão prática da vida. Na medida que o filme se desenrola, os alunos sentem-se mais leves, mais próximos do “bailarino”.
As forças reactivas, personificados na academia e na família, estão mais presentes à medida que os alunos vão afirmando a arte. O chicote do reitor depressa cai sobre o corpo do artista, o que cria. Também sobre o “capitão”, o que fala a verdade leve e descomprometida, o que observa através da multiplicidade de pontos de vista. Parece que Peter Weir tem um fraco por Nietzsche. :o)
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