30 de mai. de 2010


Numa dessas manhãs submersas pelo nevoeiro, quem me quisesse encontrar, dava comigo a

deambular de trás para a frente, com as mãos atrás das costas, qual Willie Fog no embarcadouro

do porto de Londres, excitado pela perspectiva de de se ir entregar a uma das mais

mirabolantes

experiências por que um humano jamais houvera passado: enfrentar desafios e perigos inauditos

com povos e bichos adversos pelos quatro cantos do mundo; isto a fazer fé na versão infantil dos

livros Disney, com a insuperável dupla de heróis Mickey e Pateta como protagonistas da referida

epopeia.


Nessa manhã, à entrada do meu prédio, apresentava-me aperaltado, limpo, barbeado de fresco e

com hálito de menta, e não me importava que o soubessem. Mas passaram-se os minutos às

mãos cheias e nem cheiro dela. Desisti, dei meia volta e subi a escadaria do prédio até ao 2º

andar. Enquanto limpava os sapatos no tapete, o telefone, lá dentro, avisava que alguém queria

dizer, queria falar.

Já lá dentro, fixei o olhar num cartaz que havia na parede da sala. Ema, de Vale Abraão, encosta

o seu olhar à gaiola que enclausura um canário. Se o olhar dela o encanta, como para o engolir

com o seu desejo, logo me pareceu, nesse instante, ouvi-lo cantar um canto suplicante…e foi

então que levantei o auscultador…para Ela me dizer:

“ Os Meus Filmes do Blog “

CRASH – David Cronenberg, 1996

(Fucking Days, Fucking Dogs…ou…a morte do Romantismo como vivência subordinada ao SENTIMENTO e ao IDEAL)


Parte I

Ela: “A narrativa de “Crash” desenvolve-se a partir de um acontecimento que é o mito

fundador da mudança: os meandros do corpo, de noção de corpo, de limites e da exploração

de novas sensações que culminam numa nova vivência sexual.”

Sentei-me entretanto no sofá felpudo para melhor a ouvir falar do filme que fôra ver na noite

passada, imaginando que afagava o pêlo do meu cachorro lúlú, que não estava ali como de

costume, que não andaria longe , por certo.


A mudança de que ela falava via-a eu na postura do meu lúlú de Pekão (cidade do império

chinês,

perdida algures nas planícies da Conchichina, província do reino de Sião) e na lúlú de Pekim,

cachorra estimada da vizinha cuja voz amável tenho ao ouvido, no auscultador, relatando

impressões do filme que vira na noite anterior.


Eles não são mais os mesmos, de cães de companhia, viraram companheiros infieis, ausentes eles

se tornaram desde que ouviram falar da revolução sexual e da sociedade da combustão,

conceitos

que entraram na mente de muita gente nos idos da década de 60 do século já passado.

Eles amam as feridas mútuas, feridas que acentuam quando se amam apenas como animais, já

sem sentimento, afeição, castigam-se e magoam-se ao se amarem com violência, ficam

momentos longos contemplando seus centímetros de cicatriz, corpo mutilado, mente torturada

pelo vazio de que são escravos, enredados num espaço diminuto, no meu apartamento ou no

apartamento d’Ela, Ela que continuou, dizendo:

A mutação do corpo humano, provocada pelos acidentes de viação, desencadeia a queda de

tabus, vergonhas ou preconceitos que propiciam toda uma nova lógica de desafio. Nesse

desafio, constroem-se novas acepções para o corpo num desejo escapista a uma normalidade

repugnante.”


Deixei cair na alcatifa a cinza do cigarro que não fumava, porque a visão dos dois canídeos na

minha varanda, debruçados sobre o espectáculo dos condutores que disparam os bólides sobre o

asfalto da rua, despertou-me a comparação imediata com o prazer que os personagens do filme

em causa desfrutam do objecto automóvel, o qual se impulsiona para a frente de uma forma

desenfreada e cega, submetendo-se à sorte e à pulsão da morte dos condutores.


Os personagens de “Crash” vibram bem no fundo do arrepio do sexo a entrega a um frémito

louco, irracional e seguindo o caminho da pulsão destrutiva. Sim, foi isso que vi ao observar o

meu lúlú de Pekão excitado com a competição dos bólides, imita-os, impondo com violência o seu

sexo às entranhas magoadas do corpo mordido e maltratado da lúlú de Pekim.


É o tédio e a tentativa de fuga, a fuga para a frente contra o muro, rematei eu, para explicar a

mim próprio a causa do que se impunha a meus olhos arrepiados com tão escabrosa mudança

nos

outrora tão românticos animais de estimação, precisamente a lúlú de Pekim e o lúlú de Pekão.

3 comentários:

Unknown disse...

Do ponto de vista estético, existem no Cinema sérias dificuldades em determinar o que é, quem é o autor da "obra de Arte", como também em verificar se este pode ser reconhecido como tal pois quando avaliado através de opiniões que definem "arte" como sendo uma manifestação de uma vontade individual induzida por aquilo que possa ser entendido como sendo a "alma", a "7ª arte" sendo um objecto cuja concepção é colectiva, onde a interversão de um grupo de indivíduos o transformam não na manifestação da vontade individual mas sim num produto resultante da acção determinada por uma multidão de vontades individuais que passam pelo argumentista, pelo realizador, pelos actores, pela fotografia, etc, etc, etc, torna-o refém da determinação da significância atribuída à palavra "arte" para que a sua aceitação no campo seja efectiva.

O mesmo já não se pode argumentar perante a "theorie" do Zé Alberto, estamos perante uma interessante situação onde é possível verificar como pode um objecto que para estar em conformidade com aquilo que é "arte", carece de defesa da legitimidade, dar origem à criação de um objecto de arte literária cuja legitimidade está acima das questões que envolvem o Cinema. Mesmo que o Cinema seja um produto da actividade cultural das sociedades, potencia como aqui está demonstrado, a criação de obras de arte cuja legitimidade como tal é naturalmente aceite de forma muito mais pacifica em termos de opinião.

Anônimo disse...

Esta blogocoisa é um nado morto.

Zé alberto disse...

O meu trabalho sobre o filme "Crash" não o situo como um texto no plano da crítica, da avaliação, ou até, um julgamento.
É algo que se separa dessas definições, algo que vive fora do universo do texto que se faz por necessidade de "falar sobre".
Alimenta-se da vontade de mimar o trabalho apresentado pelo cineasta, na intenção de erguer um edifício de coordenadas simbólicas para retratar um modus vivendi de que todos participamos.